quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Entrevista - Rússia pelos olhos de um brasileiro

Como parte do intento deste blog de exibir a realidade existente em países emergentes, em especial os BRICS, foi com intensa felicidade que aqui publico entrevista feita por e-mail com o brasileiro, estudante de medicina, Gilberto Mucio Lacerda de Medeiros, o qual nos fala da situação atual da Rússia, suas vantagens e desvantagens. Desde já, um muito obrigado.

1. Quais foram os motivos da escolha da Rússia como sua residência atual?

GM: Em primeiro lugar, sempre tive curiosidade pela Rússia, sempre achei um país interessante. Decidi, há cinco anos, vir para cá estudar o idioma russo, e se gostasse do lugar e me adaptasse bem, ingressaria numa facudade. E foi o que aconteceu. Depois de fazer mais um ano de faculdade preparatória, ingressei na faculdade de medicina. Hoje trabalho em uma empresa de comércio internacional e, além disso, dou aulas de português e espanhol em uma escola de línguas. Sem isso, seria impossível viver aqui, pois Moscou é a cidade mais cara do mundo.

2. Há comentários históricos de que o povo russo não é tão receptivo a estrangeiros, especialmente, por toda a questão do nacionalismo da antiga-URSS e pelo sentimento de que a economia e a política “pós-comunismo” caminham para o amadurecimento. Isto é verdade?

GM: Essa questão é bem profunda e complicada. Se for pegar isoladamente, na época da URSS, o povo era bem mais receptivo a estrangeiros, em geral, do que hoje, apesar do nacionalismo exacerbado ser o mesmo.

O país passou quase todo o século XX sob um regime tirano e ditatorial, o povo russo não acompanhou as evoluções das sociedades ocidentais, e quando o regime, ruiu o russo era um indivíduo do século XVIII (digo XVIII, pois desde antes da revolução de 1917, o povo russo já era um dos mais atrasados do mundo) em pleno século XX, ou XXI.

O que aconteceu, é que esse sentimento nacionalista foi canalizado para culpar o estrangeiro pelas mazelas do país, dando margem para o surgimento de ideologias extremistas. Então, os culpados são sempre os judeus, ou imigrantes do Cáucaso ou da Ásia Central, ou estrangeiros em geral, nunca os russos. É sempre mais fácil encontrar um inimigo externo. Esse sentimento ufanista é muito bem explorado pelo governo atual, só que são poucos os russos que se conscientizam, já que sempre tiveram o governo para pensar por eles.

Então, apesar dessa má receptividade ao estrangeiro ser hoje muito pior do que na época do regime stalinista, isso é culpa do próprio regime anterior. E não é intenção do regime atual mudar isso, pelo contrário, aos poucos estão restaurando até a imagem do ditador Stalin.

3. A economia russa é altamente dependente das atividades extrativistas (petróleo e matérias-primas metálicas) e, com a queda generalizada dos preços destas commodities, as receitas governamentais diminuíram. Além disso, em tempos de crédito farto, na questão do setor privado, as empresas russas utilizaram capital estrangeiro na forma de empréstimos para aumentar as suas operações, o que contribui para o aumento da divida externa. Antes, ela era suportada pela valorização do rublo. Mas, e agora?

Olha, eu sou bastante pessimista quanto ao futuro da Rússia. O povo russo vê o Sr. Putin (ex-presidente, agora primeiro-ministro) quase como um herói, e é até compreensível que pensem assim depois do caos pelo qual o país passou nos anos 90; contudo, eu vejo exatamente o oposto. Quando Putin assumiu em 1999, o preço do barril de petróleo estava por volta de USD 12, durante o seu governo chegou a subir mil por cento (1000%)! sem falar que a produção aumentou muito. O país ganhou muito dinheiro nos últimos anos, mas não investiu onde deveria, não restaurou seu sucateado parque industrial, e não investiu em indústrias de bens de consumo, que praticamente inexistiam ou sempre foram péssimas desde o tempo da URSS [os russos mandavam homens ao espaço, mas não sabiam fazer um papel higiênico ou não tinha “tecnologia” para fazer uma batedeira de bolo].

Outra coisa que faltou foi investimento no setor de serviços, e principalente em recursos humanos. É lenda essa estória de que a Rússia tem uma população com mão-de-obra altamente qualificada, apesar de não haver analfabetismo. Para as necessidades do mundo atual, moderno, ele estão totalmente defasados, eu diria bem atrás do Brasil [lembre-se da estória do homem do século XVIII caído de pára-quedas em pleno século XXI]. Qualquer empresa estrangeira que se instale aqui, precisa contratar para os cargos mais altos somente pessoas do ocidente.

O capitalismo nunca existiu na Rússia após o fim do regime. O sistema aqui é metacapitalista. Alguns grupos, os chamados oligarcas, apoiadores de Putin, controlam toda a economia. O pequeno e médio empresário virtualmente inexistem.

Então, na minha ótica, o país cresceu muito nos últimos nove anos, mas não se desenvolveu em praticamente nada – além de todos os índices sociais terem piorado drasticamente no país. Basta ver que o IDH do Brasil já ultrapassou o russo que continua em declínio. E pior, não criou bases para o desenvolvimento. Com o preço do petróleo abaixo dos UDS 50 / barril, a gordura da Rússia vai queimar rápido.

O Putin conseguiu a proeza de pegar um momento único na história do capitalismo, com o país ganhando dinheiro como ninguém, e o seu maior legado será a lista de bilionários da revista Forbes.

4. Na questão da liberdade de imprensa, acreditava-se que com o fim da Guerra Fria e a Queda do Muro de Berlim, tudo seria claramente aberto. Segundo a opinião internacional, pelo contrário, as pessoas vivem em um estado de coerção e censuradas estão as suas opiniões sinceras, em todos os níveis (mídia, justiça). Como exemplo disso, há um artigo publicado na revista The Economist, edição de 6-15 de Dezembro, o qual fala de um caso do julgamento sobre o assassinato de uma jornalista. Qual a sua opinião?

GM: De fato a liberdade de imprensa aqui meramente existe, apesar de o país contar com excelentes jornalistas, muito mais que o Brasil. A televisão está sob controle direto do Kremlin. Em anos aqui, nunca ví uma crítica, por mais ridícula que fosse, ao governo. Porém aqui há alguns jornalecos independentes. E o único meio de comunicação independente, de relevância, é uma rádio de notícias, a rádio Echo de Moscou (1). Há também alguns sites de notícias, independentes, na internet.

5. Qual são os mais latentes problemas sociais que você constata nas ruas?

GM: Justiça seja feita, Moscou é a cidade de grande porte mais tranquila do mundo. A violência urbana aqui é preticamente inexistente. Ando portando um notebook, ou com dinheiro a qualquer hora da noite, sem preocupação nenhuma. E nunca conheci alguém que tenha sido assaltado. Também não se podem negar as benesses que o “socialismo” trouxe para o país, seria desonestidade, que é uma educação estendida a 100 % da população, tornando-a mais homogênea, saúde, etc. Além do fato de não existir favelas ou coisa parecida. Eu diria que um dos maiores problemas sociais da Rússia é o alcoolismo. Os problemas da Rússia são antes culturais do que sociais. Os problemas sociais estão em ascenção.

6. Fale um pouco da sua experiência.

GM: Morar na Rússia é quase como viver num mundo paralelo (risos), é uma experiência única. Os russos são culturalmente muito peculiares. Basta dizer que quando saí da Rússia para outro país, como a Finlândia, por exemplo, senti-me em casa e mais próximo do Brasil. Além da experiência de conviver com gente de vários países, principalmente do Leste Europeu e da Ásia, e com várias culturas particulares do país, aprendi o idioma russo que é muito bonito, apesar de difícil. E, claro, não podia deixar de faltar, conviver com as mulheres mais lindas do mundo, que são as russas.

As dificuldades são principalmente o clima, são quase seis meses debaixo de neve e sem ver a cor do sol; a língua (inicialmente); a alimentação – aqui não se encontra carne ou um pão decente para fazer um simples sanduíche; a burocracia, que chega a ser doentia; e os próprios serviços, dos setores de serviços, em si, que são surrealmente péssimos e isso causa bastante aborrecimentos no nosso dia-dia, por exemplo, na mentalidade do russo, quando alguém te vende alguma coisa numa loja ou restaurante, ele está te fazendo um favor e você não tem o direito de reclamar, além da corrupção gereralizada e mais ou menos aberta, que faz o Brasil parecer uma Noruega.

Porém, no fim, se for pesar tudo, é uma experiência que está valendo a pena.

Informações.

(1) http://www.gazprom-media.com/en/radio.xml?&company_id=50

6 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom, repassei o post a um amigo que gosta deste país.

Gilberto disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gilberto disse...

Fala, Matheus.

Agora que ví que publicastes a entrevista. Veleu.

Qualquer coisa que precisares da Russia no que diz respeito a dúvidas, curiosidades ou informações, e eu puder ajudar, estou a disposição.

Um grande abraço e ficarei de olho em teu blog.

Unknown disse...

Dae Matheus!! Gostei muito!
Um ponto que eu notei nessa entrevista e que coincide com o que eu vejo no dia a dia aqui na Inglaterra, e que sao poucos paises no mundo que tem um atendimento bom e diferenciado como no Brasil.
Ja viajei em algums paises aqui na Europa e nada se compara com o visto no Brasil.
Eu, como filho de um vendedor, aprendi que os clientes sao a alma de qualquer empresa, se nao sabemos trata-los bem, eles nao comprarao novamente.

Parabens! Vou continuar lendo seu blog

Matheus Pacini disse...

Boa tarde Juliano!

Primeiramente, obrigado pela participação no blog.

Eu somente viajei até Argentina, Uruguai, Paraguai e Canadá. Não tive nenhum problema por lá, acredito que a tendência é que o mundo continue no caminho da união, apesar da crise.

Continue participando, inclusive, com artigos! Abração!!

Pedro Henrique disse...

Muito bacana esta entrevista. Ler a respeito de um outro país pelos olhos de uma conterrâneo é prazeroso e interessante. Na minha opinião, o melhor disso tudo é perceber que em todos os lugares / países do mundo há vicios e virtudes, sendo que muitas vezes somos acostumados a reclamar do Brasil e exaltar povos estrangeiros...

Enfim... Pacini, faça mais entrevistas desse tipo!!!